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sexta-feira, fevereiro 04, 2005

Sobre dois filmes ou as doenças das sociedades modernas


(personagem Buscapé do filme "Cidade de Deus")

A "Cidade de Deus", de Fernando Meirelles, impressionou-me como poucos filmes conseguem impressionar-me... A Cidade de Deus existe com esse mesmo nome. As personagens confundem-se com as pessoas de carne e osso. E sangue.

Como não consigo lembrar-me de outro filme com as mesmas características (que eu tenha visto), vou tomar a liberdade de o comparar com "Elephant", de Gus Van Sant.

"Elephant" tem o mesmo pano de fundo que "Bowling for Columbine", de Michael Moore, e trata de um massacre que ocorreu num liceu norte americano, o Columbine. Este massacre foi perpetrado por dois estudantes fortemente armados que terão disparado indiscriminadamente contra os seus colegas. Sim, é chocante. E acontece esporadicamente. Contudo, trata-se de um problema de solução relativamente simples: controlando melhor o acesso às armas e promovendo valores diferentes nos cidadãos. Mas não é intenção deste texto criticar os padrões norte-americanos. A verdade é que ambos os filmes "Cidade de Deus" e "Elephant" deixam em nós uma série de sensações diferentes, e chegam a deixar-nos chocados, mas de forma diferente.

Se não vejamos: quando vi "Elephant" comecei por sentir-me feliz por não ter sido educada numa escola norte-americana. Depois senti-me fisicamente arrepiada e insegura pela facilidade com que se adquirem armas nos EUA. O arrepio deu lugar ao pavor a que se seguiu um enjoo e uma vontade de ir para casa a correr e nunca mais voltar a esse país. Fiz um exercício. Obriguei-me a pensar que um caso isolado não espelha uma nação inteira. Pode ser verdade. Mas também é verdade que os cidadãos norte-americanos em geral, salvo talvez, algumas excepções, são educados num ambiente de competição, materialismo, repressão até e muito plástico. São mesmo impelidos à vingança e o exemplo vem dos seus líderes, dos seus filmes e dos valores que estes implementam. Afinal, o espelho da nação inteira não é tão inocente como eu queria obrigar-me a pensar.

Regressemos agora à "Cidade de Deus". Este filme possui uma linha narrativa interessante. Conta a história de uma favela do Rio de Janeiro e da vida das tais personagens que protagonizaram histórias verdadeiras também. A vida nas favelas não é fácil. E por isso o filme não é fácil. Não vou descrevê-lo aqui, prefiro que se sintam levados a vê-lo. Vale a pena. Tal como "Elephant", aliás! "Cidade de Deus" é, contudo, especial. Ele transporta-nos por uma sucessão de acontecimentos e de sensações diferentes. Comecei por sentir-me incluída, depois invadida, triste, alegre, revoltada, enjoada e por fim aliviada, mas aquele alívio que se sabe ser apenas temporário... Mas mesmo lá no fim, no final mesmo, a sensação é de impotência total. As máfias do tráfico de drogas são um cancro real e extremamente difícil de erradicar. Digamos que são as baratas da sociedade. Elas surgem em locais húmidos, sujos e escuros. De onde todos fogem excepto quem não tem condições para procurar algo melhor. Os que lutam pelo seu dia-a-dia e sentem as alegrias, as tristezas, o medo, o nojo, a revolta... Os que são obrigados a conviver com as baratas e que se transformam nelas por falta de alternativas ou porque não sabendo melhor, se juntam por vingança. O Brasil surge como uma nação desorientada.

Depois de se ver "Cidade de Deus" fica-se com medo. Mas consegue fazer-se o exercício de pensar que aquele caso não espelha a nação brasileira. Porque ainda que alguns brasileiros possam ter fortes influências norte-americanas na sua educação, a grande maioria possui um coração com valores não materialistas. E isso faz toda a diferença. Isso faz de "Elephant" um filme de violência fria, e calculista! E faz de "Cidade de Deus" um filme violento, mas quente. E sobretudo humano. De uma humanidade bestial, quase, mas humano.

"Elephant" e "Cidade de Deus" retratam os valores frios de uma sociedade capitalista e que se diz desenvolvida e os valores mais humanos de uma sociedade flagelada pelas diferenças sociais abismais e pela luta constante pela sobrevivência face à corrupção e à pobreza.

Depois de ver "Cidade de Deus" não me sinto paternalista. Não se trata disso. Os brasileiros são fortes (têm mesmo que o ser) e todas as sociedades, sem excepções têm os seus problemas e as suas formas de lidar com eles. Mas fiquei triste, porque queria poder fazer alguma coisa, e não posso. Mas pelo menos não me apetece virar as costas ao Brasil...