Arsène Lupin
Garanhão Lusitano
Arsène Lupin, famoso ladrão e cavalheiro, apenas roubava torrões de açúcar dos meus bolsos, com os seus lábios preenseis e sensíveis...
Sempre vestido de branco dos pés à cabeça fazia questão de se pavonear mostrando a sua delumbrante musculatura de garanhão Lusitano, já grisalho, mas ainda com muito vigor e vida! Os seus olhos sempre alerta tinham dificuldade em seguir os movimentos das suas orelhas, sempre apontadas para a direcção do menor ruído..
Arsène é um cavalo, claro. Este Arsène a que me refiro, pelo menos!
Costumava montá-lo nas aulas de Domingo de manhã. Tinha um passo lento, mas firme. E quando saltavámos os pequenos percursos de rias e barras, nunca mais altas do que um escasso metro, Arsène ganhava asas! E energia extra! Corria para os obstáculos como se fossem torres de cinco metros! Arqueava o pescoço todo e logo o tornava a esticar como se para tomar balanço para transpor a vida...
Devido aos seus instintos atávicos, os cavalos não se deixam surpeender facilmente deitados, fragilizados. Até nos seus carcereiros de duas pernas vêm por vezes um potencial predador ou fonte de aflições. São criaturas esquivas e nervosas, por muito bem tratados que sejam. Faz parte da sua natureza de presa difícil...
Um dia cheguei atrasada. Arsène não tinha sido, portanto, aparelhado. Fui buscar o arreio e a cabeçada e dirigi-me à porta da morada de Arsène... Bati à porta.
Estranho? Não... Não é estranho que nos batam à porta antes de entrar...
Arsène aproveitara o meu atraso para por o sono em dia! Deitado na palha da box, apenas olhou na minha direcção. Não fez menção de se levantar, sequer. Fiquei radiante!! Que miúda é que se mantém indiferente perante tal demonstração de confiança... Mesmo que fosse uma demonstração de preguiça de um equídeo experiente e habituado ao contacto com os seus frequentes visitantes bípedes: fiquei contente! Pronto! Cheguei a sentir a lágrimazinha a assomar ao cantinho do olho, quente e salgada... Baça. Lamechices... Talvez, mas Arsène era um amigo.
Entrei poisei o arreio na porta da box e falei com o meu amigo branco, ladrão de torrões de açúcar. É preciso dizer que nem sempre os trazia no bolso. Arsène habituara-se à irregularidade no fornecimento destes preciosos e doces tesouros quadrados. Não esperava. Procurava, mas não ficava de mau humor se os não encontrasse escondidos no fundo do bolso.
Sentei-me ao lado da grande massa branca cujo nariz expelia uns bafos quentes a ritmo regular. E pesquisava, com a sua pele sensível. Estive um bom bocado com ele a massajar-lhe os músculos fortes com um punhado de palha limpa. Mais para lhe remover algumas manchas amareladas de origem suspeita... Numa pelagem branca tornam-se demasiado evidentes e além de inestéticas... Incomodativas para o cavalo, imagino... Aparelhei-o, finalmente. E finalmente se dignou levantar-se para me deixar apertar a cilha... Levei-o pelas rédeas, a pé, até ao picadeiro. Pedi licença para entrar, timidamente. Consciente do atraso, mas feliz! O instrutor soltou um “Tardou mas arrecadou!!!”, sonoro, mas risonho! Alívio... Apertei a cilha mais uns dois furos, porque Arsène Lupin, ladrão de torrões de açúcar, sempre vestido de branco, era também muito astuto. Tinha o hábito de encher de ar os seus grandes pulmões de garanhão Lusitano no momento em que se apertava a cilha em torno da sua enorme caixa toráxica e se um cavaleiro mais distraído não tivesse o cuidado de a verificar após ter feito o sábio animal dar alguns passos... Teria uma desagradável e escorregadia surpresa quando pusesse todo o seu peso sobre o estribo, na altura de montar!!!
Finalmente montei e voltei a ser apenas mais um cavaleiro e a sua montada, misturados numa amalgama de estribos, pernas, toques e ruídos abafados de cascos na terra do picadeiro...
Arsène era sobretudo um amigo...
Não mais voltei a vê-lo depois dessa derradeira aula de salto de osbtáculos que Arsène sempre transpunha com vigor exagerado... Não voltei a saltar com aquele cavalinho branco e musculado de pescoço grosso e arqueado, que gostava de limpar todos os grãos de açúcar que ficavam nas minhas mãos... Como se deles viesse toda a energia que inventava, para transpor as incalculaveis barreiras que imaginava no seu cérebro equino, na altura em que salta, às cegas... Talvez não gostasse de saltar e quisesse saltar tudo de uma vez, para ficar descansado! Talvez tivesse um gosto tão grande pelo exercício de saltar que o fazia com mais entusiasmo do que uma aborrecida aula de ensino...
Arsène era sobretudo um amigo, mas nunca consegui perceber o que lhe ia na alma Lusitana...
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